Falar de dragões abre espaço para discussões tão variadas quanto as representações destes seres míticos na cultura popular. Há dragões sábios, maldosos, tricksters, seres divinos e infernais. Os videogames mostram traduções da imagem dos dragões de todos os tipos possíveis, atualmente culminando em símbolos complexos e interessantes, de Dragon Age e Guild Wars 2 a The Elder Scrolls: Skyrim. Mas houve um tempo em nossa cultura do entretenimento digital em que os dragões não lutavam por sobrevivência, por magia ou por um pote de ouro, mas por princesas.
Claro, mesmo na década de 1970 e 80, muitos dos seres reptilianos guardam amuletos (como é o caso de Adventure, de 1970, e de Dragonstomper, de 1982) e salas cheias de tesouros (Dragonfire, de 1982). Contudo, se colocarmos em perspectiva, na mesma década podemos citar exemplos de jogos cujos dragões curtiam mesmo a realeza -- desde que ela fosse jovem e bonita. Entre eles estão Dragon's Lair (1983), Dragon Buster (1984), Dragon Warrior (1986) e Black Lamp (1988). E se você me permitir a licença poética (e a da Nintendo), também em Super Mario Bros. (1985). Afinal, Bowser pode ser considerado um tipo de tartaruga dracônica. Games como Fire Emblem iriam aparecer no final daquela década, e o amado Breath of Fire redefiniria o uso de dragões em RPGs nos anos 1990.
É algo peculiar o fato de que ao menos três dos games citados no tema “dragões preferem princesas” se tornariam seminais para a indústria: Dragon's Lair, Dragon Quest e Super Mario Bros.. Acredito que a questão narrativa de Mario versus Bowser, ou o papel de Peach, e até mesmo o legado do game, foram tópicos muito comentados em diversos textos, mas muito pouco discutiu-se sobre o imaginário do dragão.
Dragon's Lair, contudo, passou por um limbo de referencial, já que voltou a ser comentado com o uso renovado dos QTE, ou "'quick time events" nos videogames. O título apresentava a tradicional história do resgate de uma princesa das garras de um dragão, mas ficou conhecido pelo uso de novas tecnologias (no caso, o Laser Disc), e por ser um dos criadores dos QTE. Enquanto isso, Dragon Warrior (ou Dragon Quest no Japão) se tornou um fenômeno cultural e influenciou a criação de outros RPGs orientais graças à excelência em diversos aspectos técnicos. Não por coincidência, o game também contava com o herói que salvava uma princesa e depois partia para um embate com o reptiliano.
Tanto desenho animado quanto game interativo, Dragon's Lair marcou época e deixou saudade

A figura do dragão e seus significados

Histórias em que dragões raptavam princesas e/ou participavam do sacrifício de virgens são bem antigas. Desde a adaptação do conto Os Dois Irmãos pelos Irmãos Grimm, até Andrômeda que foi salva por Perseus do dragão aquático Cetus na mitologia grega, ou lendas medievais como São Jorge e o resgate da princesa. Mesmo na cultura oriental, é possível encontrar traços deste tropo se pensarmos em figuras reptilianas, como a hidra de oito cabeças Orochi.

O uso da figura aterrorizante dos dragões em todas essas narrativas, incluindo Dragon's Lair e Dragon Warrior, serve para alguns papeis importantes. O primeiro elemento que o vilão introduz é a mudança: tudo estava bem e normal no reino, até que alguém importante é raptado -- neste caso, uma princesa. Vale comentar que foi exatamente esse tipo de lenda que criou o arquétipo da donzela em perigo, uma mulher que deve ser protegida e salva por um herói. Claro, se observarmos em perspectiva histórica, aplicar o tropo da donzela faz bem mais sentido na antiguidade do que nos tempos pós Xena ou uma Thor feminina. Em um segundo momento, o antagonista representa a malignidade. Mesmo que seu objetivo seja simples: desestabilizar o reino, casar com a princesa; o dragão aparece com um atestado de vilania, algo que guerreiros comuns não podem enfrentar. E dá, assim, a chance de aparecimento de um protagonista que seja digno de tais feitos.

Colocar um réptil inteligente geralmente considerado masculino (em Dragon Warrior, o adversário podia se transformar de um mago poderoso em um dragão, por exemplo) ao lado de uma donzela também tem um "quê" de voracidade. Não apenas pelo inimigo ameaçar aquilo que consideramos como sagrado, puro, virginal e inocente, mas pela própria aparência do monstro: um animal massivo, cheio de garras e dentes, prontos para retirar a vida da vítima (e a pureza do reino). Ou seja, a mulher de alta classe ou de sangue real se torna uma metáfora para tudo o que é sacrossanto e venerável daquela terra.
Em Dragon Quest (Dragon Warrior), o dragão antagonista não é nada irracional

Um grande mal = um grande herói

Se juntarmos tudo isso, podemos chegar à conclusão de que o dragão que prefere princesas é um opositor iniciático. Assim que ele aparece, ameaça tudo o que é conhecido e normal, e altera a história do lugar para sempre -- porque depois de conhecer algo, é impossível simplesmente se esquecer. Quando um mal impensável ocorre, ele ocorre para sempre, nem que seja apenas na memória dos que sobreviveram.
Por outro lado, sem um grande mal, não é necessário haver um grande herói. O que significa que não sabemos o quão grandiosos podemos ser se não formos colocados diante de alguma provação no caminho. Quanto maior o desafio, maior a vitória, e maior o aprendizado. Dessa maneira, é o aparecimento de um dragão que pode resultar na reafirmação do bem.
Pensando nestes termos, faz todo o sentido que, no começo das narrativas dos jogos, tivéssemos histórias sobre dragões e princesas em games que ajudariam a moldar o que conhecemos da indústria. Seja na rebeldia de usar uma nova tecnologia e apresentar uma mecânica que ficou esquecida no tempo, antes de voltar a figurar em obras que venderiam milhões, como é o caso de Dragon's Lair. Seja na importância de criar a fundação que daria corpo aos RPGs japoneses -- sendo que a consequência seria um sucesso absoluto de crítica, público e vendas pelas duas décadas subsequentes, como é o caso de Dragon Warrior. Isso sem contar o valor e o impacto de um Super Mario Bros..
Desde os tempos antigos, os dragões desafiaram heróis como São Jorge (Foto: Reprodução)
Quando os dragões preferiam as princesas, ainda éramos uma indústria em nascimento. Talvez estes games tenham ajudado a começar um processo de iniciação para toda uma comunidade, e auxiliado a moldar novas possibilidades para os heróis e as heroínas que vieram depois deles. Porque depois de descobrir um novo mundo, é impossível deixá-lo para trás sem, ao menos, um pouco de nostalgia.